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sábado, 23 de outubro de 2010


'Pede um cigarro, um objeto nas mãos torna mais fácil uma conversa
dessas, compreende? A fumaça sobe devagar, já não existem os círculos
dourados, agora são apenas cinza -a fumaça. Em torno, nada mudou. Até a
água esverdeada do aquário parece a mesma. Espero. O peso na cabeça se
dissolve aos poucos em contato com o dia.
- Não quero complicar nada. Nunca quis. Também não queria falar.
Mas eu não podia simplesmente receber você com a cara de ontem.
Sentada na poltrona ao lado da janela, uma cara de hoje, o cabelo preso
na nuca, o casaco do pijama escondendo as pernas, os pés descalços
aparecendo. Movimento o corpo sob o lençol, sinto o contato do pano em
toda a pele. Estou nu e ela adivinha o meu pensamento. Sorri:
- Não houve nada. Você não precisa se preocupar pelo que não houve.
Você estava bêbado demais para qualquer coisa.
O cigarro, a maçã nas mãos: o tempo colocou na testa uma ruga que
antes não havia.
De repente sinto medo. Um medo antigo, o mesmo que sentia o
menino escondido embaixo da escada, esperando castigos. Um medo e um
frio que nascem de alguma zona escondida no cérebro, nas lembranças, nas
coisas que o tempo escondeu ao avançar, como se recuando súbito pusesse a
descoberto todos os cantos invisíveis, todas as teias de aranha recobrindo
velhos muros, os mesmos que tantas vezes tentei escalar sem que houvesse
nada depois, nenhum caminho, nenhuma casa. Nada. '

(Caio Fernando Abreu)

4 comentários:

  1. Caio, grande caio. Belo texto. Estou te seguindo aqui.

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  2. Lindo esse!

    Desculpa a ausência aqui no blog =)

    Bjo

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  3. Respondendo lá, sim sou eu que escrevo os textos do blog, vou acopanhar por aqui também.

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  4. Poxa, muito obrigado, é muito satisfátorio os elogios, muito obrigado mesmo.

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