Total de visualizações de página

domingo, 31 de outubro de 2010

"Mas não vou ceder. Foi a última paixão. Paixão é o que dá sentido à vida. E foi a última. Tenho certeza absoluta disso. Agora me tornarei uma pessoa daquelas que se cuidam para não se envolver. Já tenho um passado, tenho tanta história. Meu coração está ardido de meias-solas. Sei um pouco das coisas? Acho que sim. Tive tanta taquicardia hoje. Estou por aí, agora. Penso nele, sim, penso nele. Mas não vou ceder. Certo, certo: ninguém tem obrigação de satisfazer ao teu desejo, pela simples razão de que você supõe que teu desejo seja absoluto. Foda-se seu desejo, ora. Me dói não ter podido mostrar minha face. Me dói ter passado tanto tempo atento a ele — quando ele nunca ficou atento a mim. E eu passei tanta coisa dura. Rita Lee canta “são coisas da vida…”.
(Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

p.s.: Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis. E amanhã tem sol.


Te escrevo com um cigarro aceso e uma xícara de chá de boldo. A escrivaninha é muito antiga, daquelas que têm uma tampa, parece piano. Tem um pôster com Garcia Lorca na minha frente. Um retrato enorme de Virginia Woolf. E posso ver na estante assim, de repente, todo o Proust, e muito Rimbaud, e Verlaine, Faulkner, Ítalo Svevo, William Blake. Umas reproduções de Picasso. Outras de Da Vinci. Um biscuit com um pierrô tão patético. Uma pedra esotérica ainda de Stonehenge, Inglaterra, uma caixinha indiana. Todos os meus pedaços aqui.

Cansada, cansada. Quase não dormi. E não consigo tirar você da cabeça. Estou te escrevendo porque não consigo tirar você da cabeça. Hesito em dizer qualquer coisa tipo me-perdoe ou qualquer coisa assim. Mas quero te contar umas coisas. Mesmo que a gente não se veja mais. Penso em você, penso em você com força e carinho. Axé.




Estou te querendo muito bem neste minuto. Tinha vontade que você estivesse aqui e eu pudesse te mostrar muitas coisas, grandes, pequenas, e sem nenhuma importância, algumas.

Fique feliz, fique bem feliz, fique bem claro, queira ser feliz. Você é muito lindo e eu tento te enviar a minha melhor vibração de axé. Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas que seja bom o que vier, para você, para mim.

Com cuidado, com carinho grande, te abraço forte e te beijo,


p.s.: Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis. E amanhã tem sol.


(Caio Fernando Abreu)

domingo, 24 de outubro de 2010


"Andei amando loucamente, como há muito tempo não acontecia. De repente a coisa começou a desacontecer. Bebi, chorei, ouvi Maria Bethânia, fumei demais, tive insônia e excesso de sono, falta de apetite e apetite em excesso, vaguei pelas madrugadas, escrevi poemas (juro). Agora está passando: um band-aid no coração, um sorriso nos lábios – e tudo bem. Ou: que se há de fazer."

(Caio Fernando Abreu) 


sábado, 23 de outubro de 2010


'Pede um cigarro, um objeto nas mãos torna mais fácil uma conversa
dessas, compreende? A fumaça sobe devagar, já não existem os círculos
dourados, agora são apenas cinza -a fumaça. Em torno, nada mudou. Até a
água esverdeada do aquário parece a mesma. Espero. O peso na cabeça se
dissolve aos poucos em contato com o dia.
- Não quero complicar nada. Nunca quis. Também não queria falar.
Mas eu não podia simplesmente receber você com a cara de ontem.
Sentada na poltrona ao lado da janela, uma cara de hoje, o cabelo preso
na nuca, o casaco do pijama escondendo as pernas, os pés descalços
aparecendo. Movimento o corpo sob o lençol, sinto o contato do pano em
toda a pele. Estou nu e ela adivinha o meu pensamento. Sorri:
- Não houve nada. Você não precisa se preocupar pelo que não houve.
Você estava bêbado demais para qualquer coisa.
O cigarro, a maçã nas mãos: o tempo colocou na testa uma ruga que
antes não havia.
De repente sinto medo. Um medo antigo, o mesmo que sentia o
menino escondido embaixo da escada, esperando castigos. Um medo e um
frio que nascem de alguma zona escondida no cérebro, nas lembranças, nas
coisas que o tempo escondeu ao avançar, como se recuando súbito pusesse a
descoberto todos os cantos invisíveis, todas as teias de aranha recobrindo
velhos muros, os mesmos que tantas vezes tentei escalar sem que houvesse
nada depois, nenhum caminho, nenhuma casa. Nada. '

(Caio Fernando Abreu)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

' Nao choro mais. Na verdade, nem sequer entendo porque digo mais, se nao estou certo se alguma vez chorei. Acho que sim, um dia...


... quando havia dor. Agora so resta uma coisa seca. Dentro, fora! '



E recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa só existência. É por isso que me esquivo e deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam - e queimar também destrói.

(Caio Fernando Abreu).

segunda-feira, 18 de outubro de 2010


'Eu entro nesse barco, é só me pedir. Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou. Eu abandono tudo, história, passado, cicatrizes. Mudo o visual, deixo o cabelo crescer, começo a comer direito, vou todo dia pra academia. Mas você tem que remar também. Eu desisto fácil, você sabe. E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos, mas eu entro nesse barco, é só me pedir. Perco o medo de dirigir só pra atravessar o mundo pra te ver todo dia. Mas você tem que me prometer que vai remar junto comigo. Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir. Mas a gente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto. Eu te ensino a nadar, juro! Mas você tem que me prometer que vai tentar, que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças! Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa, que vale a pena. Que por você vale a pena. Que por nós vale a pena. Remar. Re-amar. Amar.'

(Caio Fernando Abreu)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

"Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não consegurás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dela, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dela(...)"


(Caio Fernando Abreu).

quinta-feira, 14 de outubro de 2010


' Eu estive trancado num quarto escuro por toda a vida. 
A janela estava vedada... nao havia luz alguma la, por isso o espelho nada refletia. 
Mas a parede do quarto apodreceu e alguns tijolos cairam, entao a luz pode entrar e eu pude me ver finalmente... Comeco a entender agora o que sou, mas da medo... E agora a porta ja nao esta mais trancada, sera que devo sair??
... Um tempo depois, eu respirei fundo e sai, no inicio a luz machucava os olhos... ha dor... ha revolta... e sem querer acabei ferindo quem mais me ama, pois nao sou como sempre sonhou e nem como sonhei... eu sofro junto, as lagrimas aumentam minha angustia.. eu queria voltar para o quarto original, juro que queria, mas parece que cresci, aquele quarto nao pode me conter mais.
Viver... eh muitas vezes estar em sofrimento, mas o fato de viver independente da minha vontade.'

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo, No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama também.

(Caio Fernando Abreu)

domingo, 10 de outubro de 2010

'Meu nome é Caio F.
Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você na escada.

Preciso de alguém, e é tão urgente o que eu digo.
Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto.
Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.
Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão. (...)

Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.'


(Caio Fernando Abreu - Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87)

sábado, 9 de outubro de 2010

'De vez enquando eu vou ficar esperando voce numa tarde cinzenta de inverno, bem no meio duma praca, entao meus bracos nao serao suficientes para abracar voce e a minha voz vai querer dizer tanta, mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme. So olhando voce, sem dizer nada, so olhando e pensando: meu Deus, como voce me doi de vez enquando!'


(Caio Fernando Abreu)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

'Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameacou e nao chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanha que nao existe, pelo muito que amei e nao me amaram, pelo que tentei ser correto e nao foram comigo. Meu coracao sangra com uma dor que nao consigo comunicar a ninguem, recuso todos os toques e ignoro todas as tentativas de aproximacao. Tenho vergonha de gritar que esta dor e so minha, de pedir que me deixem em paz e so com ela, como um cao com seu osso.
A unica magia que existe e estarmos vivos e nao entendermos nada disso. A unica magia que existe e a nossa incompreensao.'

(Caio Fernando Abreu)
'Eu sempre digo que posso ter uma solidao medonha.
Mas sempre vai ter um vasinho de flor num canto.
A gente pode enfeitar a amargura.'

(Caio Fernando Abreu).